Ser leitor assíduo de Clarice Lispector é um enveredar-se em fazer descobertas e redescobertas de si e do próprio movimento da vida. A autora parecia ter consciência de que a sua prática de escritura era um enveredar-se nas entrelinhas do que é ser humano, do que é existir, do que é viver. Durante o tempo em que escreveu cronicas para leitores de um jornal Clarice parece ter tido o cuidado de conservar certo teor literário em suas crônicas para brindar os leitores que procuravam por sua coluna e que conheciam seus contos e romances.
Quem conhece a escritura da autora ao ler esse tipo de textos que Clarice, fez por alguns anos para um Jornal pode estranhar um pouco a maneira de escrever, já que Clarice parecia ser uma escultora da língua que levava o leitor ao mais profundo de si mesmo. Eu mesma ganhei um livro chamado "Correio Feminino" que trás alguns textos dessa época de jornalista literária da autora e confesso que fiquei um pouco frustrada diante dos textos que havia no livro. Não consegui compreender como uma autora tão profunda literariamente poderia ter feito textos tão superficiais, sem compromisso nenhum em levar o leitor a ir além das entrelinhas. Sei que para o contexto de uma coluna em um jornal poderia ser uma experiência um pouco fora dos padrões para uma autora como Clarice e que o leitor que procura uma coluna no jornal parece ser um leitor bem diferente daquele que consome literatura. Mesmo assim não me convenci e fiquei com um ar de frustração por saber que minha escritora brasileira favorita escrevia de modo tão superficial em sua coluna jornalística.
Essa frustração teve respostas há meses atrás depois que ganhei um livro intitulado "A Descoberta do Mundo". Trata-se de uma reunião de textos escritos pela própria Clarice na época em que os publicava em crônicas, em um jornal. Quanta diferença. O livro é uma reunião cronológica de seus escritos (mas creio que foram escritos mais alguns). Uma reunião editada, creio que bem avaliada e que resgatou na leitora que sou as características literárias de Clarice no texto jornalístico. Apesar de ter um caráter mais simples que seus romances e por conta disso os textos fluírem mais facilmente, as cronicas desta edição resgatam em nós a reflexão do sentido da vida, do amor, abre-nos os olhos para as angustias humanas e nos dão uma boa ideia da mulher profunda e inquieta que Clarice Lispector era com o movimento da vida.
Alguns textos são encantadores, lembram os contos da autora e tem um singular pano de fundo literário como é o caso do texto Anunciação. A narradora conta muito simplesmente que tem em sua casa uma pintura sacra de Maria grávida do menino Jesus do italiano Savelli e passa a contar as minúcias da pintura contando que Maria aperta a própria garganta em surpresa e angustia pelo destino ao qual a ela foi destinado, a mãe do filho de Deus. No final do pequeno texto, Clarice faz uma bela reflexão literária da missão de cada um de nós como seres humanos inseridos no destino da vida, do mundo.
Esse livro é um retrato da Clarice Lispector mais convincente da autora que escreve de modo literário e, também, jornalístico, um retrato que para quem conhece a maneira de escrever tão singular dela há de concordar que faz maior sentido. Cheguei a concluir que não é o que Clarice escreveu que faz a diferença e sim como esses textos são compilados, reunidos e republicados para os leitores de hoje. Em alguns momentos ela escreveu sim de forma descompromissada com a literatura, de maneira mais leve, falando de coisas simples do dia-a-dia, especialmente das mulheres, sem que houvesse algo ligado à literatura dentro disso, mas é fato que Clarice produziu textos belamente literários e que foram publicados como crônicas, também, no jornal, deixando-me claro que tudo depende do ponto de vista de como se olha a obra da autora e do livro que se escolhe como referência para conferir sua obra. Eu gostei muito de "A Descoberta do Mundo" e por isso indico. Eis aí em baixo o livro que é da editora ROCCO: