sábado, 1 de agosto de 2009

Os contos de Clarice

Clarice além de escritora literária tinha como ofício o jornalismo. Talvez por isso seus contos tenham como caracteristica o eu narrador mais solto, aproximando- se da autora. As qualidades das frases de seus contos pode parecer uma cilada para o leitor: frases curtas, compostas de palavras diárias constituindo ciladas para um leitor desavisado. Clarice evita as tiradas filosofantes reduzindo o vício de intelectualização e a subjetivação da realidade. A força de seu texto portanto, chega ao leitor pela profundeza das verdades do ser humano, suas angustias, pela exacerbação do momento interior de seus personagens, pela busca psicológica no intuito de saber- se no mundo e pelo dimensionamento da paixão pela figura feminina.
No geral são narrativas de linguagem simples e fluída, com um discurso apoiado em um forte fluxo de consciência, desenroladas em um enredo do dia-a-dia, vivendo sempre um proceso de epifania, (processo básico da escritura de Clarice Lispector).É a expressão de um momento excepcional, em que se rasga para a personagem a casca do cotidiano, um momento de perigo à borda do abismo, da sedução que espreita todas as vidas.


Restos do Carnaval – conto de Clarice Lispector





Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou para a minha infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com um véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia que se segue ao carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa ia se aproximando, como explicar a agitação íntima que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.
No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem. Duas coisas preciosas eu ganhava então e economizava-as com avareza para durarem os três dias: um lança perfume e um saco de confete. Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz.
E as máscaras? Eu tinha medo mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim.
Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente, ninguém em casa tinha cabeça para carnaval de criança. Mas eu pedia a uma de minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me causavam tanto desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos frisados pelo menos durante três dias por ano. Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia ao meu sonho intenso de ser uma moça – eu mal podia esperar pela saída de uma infância vulnerável – e pintava minha boca de batom bem forte, passando também ruge nas minhas faces. Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice.
Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir pouco. É que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e o nome da fantasia era no figurino Rosa. Para isso comprara folhas e folhas de papel crepom cor-de-rosa, com as quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de uma flor. Boquiaberta, eu assistia pouco a pouco à fantasia tomando forma e se criando. Embora de pétalas o papel crepom nem de longe lembrasse, eu pensava seriamente que era uma das fantasias mais belas que jamais vira.
Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel crepom, e muito. E a mãe de minha amiga – talvez atendendo a meu apelo mudo, ao meu mudo desespero de inveja, ou talvez por pura bondade, já que sobrara papel – resolveu fazer para mim também uma fantasia de rosa com o que restara de material. Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma.
Até os preparativos já me deixavam tonta de felicidade. Nunca me sentira tão ocupada: minuciosamente, minha amiga e eu calculávamos tudo, embaixo da fantasia usaríamos combinação, pois se chovesse e a fantasia se derretesse pelo menos estaríamos de algum modo vestidas – à idéia de uma chuva que de repente nos deixasse, nos nossos pudores femininos de oito anos, de combinação na rua, morreríamos previamente de vergonha – mas ah! Deus nos ajudaria! Não choveria! Quanto ao fato de minha fantasia só existir por causa das sobras de outra, engoli com alguma dor meu orgulho que sempre fora feroz, e aceitei humilde o que o destino me dava de esmola.
Mas por que exatamente aquele carnaval, o único de fantasia, teve que ser tão melancólico? De manhã cedo no domingo, eu já estava de cabelos enrolados para que até de tarde o frisado pegasse bem. Mas os minutos não passavam, de tanta ansiedade. Enfim, enfim! Chegaram três horas da tarde: com cuidado para não rasgar o papel, eu me vesti de rosa.
Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei. No entanto essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um destino é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge – minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa – mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil – fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros me espantava.
Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me penteou e pintou-me. Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas histórias que eu havia lido sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas com remorso lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria.
Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para mim significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos já lisos, de confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.

Clarice Lispector
Felicidade clandestina. Rio de Janeiro:Rocco, 1998.








Enigma
Clarice me diz coisas qeu eu desejaria compreender
Clarice tem mania de me des- ensinar a vida
sussurrando- me águas de uma além realidade...
....tão presente no meu ser....
Clarice revira- me,
despe- me,
elucida- me.
Com sua lamparina lúdica
me faz respirar o poder da palavra.
Alimenta- me com mistérios
desenhando- os dentro de mim.
Clarice hipinotiza- me com suas mulheres initeligíveis
Clarice decifra minha alma
e revela- me a Deus.
(com carinho poético, Thays Araujo)



Singularidades

Ela bebe Clarice
em xícaras de porcelana
em taças de cristal
em copos descártaveis

pra ela o externo não importa

Ela come Clarice
de pernas trançadas
penduradas
abertas

pra ela a posição não importa

Ela lambe os dedos
e passa em Clarice
que se abre toda e diz o que sente
enquanto ela viaja e viaja e viaja...
porque pra Tarsila
cada folha do livro de Clarice
é um gozo de pensamento

Giselle Ribeiro/ Objeto Perdido

Um comentário:

  1. A PÁ E A LAVRA
    ou
    A PÁ É A LAVRA

    Não quero falar da
    Palavra escrita
    Falada palavra.
    Quero falar da
    Palavra que fala.
    Maldita palavra
    Não dita,
    Bendita palavra
    Nunca falada,
    Mas que uma vez dita
    Diga tudo.

    "Clarice Lispector é uma das almas literárias raras do mundo porque sabia da minha alma" - Lindo demais. Literário demais. Você está escrevendo demais.

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